sábado, 17 de novembro de 2007

O Diário de Elisa

Este texto foi transcrito manualmente de um livro chamado Diário de Elisa, por uma amiga minha que me autorizou a "colar" aqui.

«Nunca esquecerei uma tarde de 1996. Estava sentado no estúdio da minha casa, em Dallas, lendo o diário da minha filha Elisa. De repente, deparei com a seguinte mensagem do seu assassino:
''Sou a tua desculpa, o escape para a tua dor. Faço que te isoles e esqueças os teus problemas. Entorpeço os teus sentimentos e aqueço-te por dentro. Protejo-te do Mundo, que pode ser tão amargo e sem-coração. Faço que nada mais importe e, se não desistires, faço-te morrer''.
«Estas palavras são ainda mais arrepiantes escritas na letra de Elisa. A minha pequenina sofria de uma doença - bulimia - uma doença que sussurra ao ouvido dos que domina que enganem os que lhes são mais próximos e depois lhes grita dentro da cabeça que não valem nada. E que mata. Durante o tempo da nossa vida, aproximadamente 50 000 homens e mulheres morrerão de complicações relacionadas com distúrbios alimentares.
«Eu sabia da luta que Elisa travava contra a sua doença. Foi a luta de toda a nossa família durante anos. Mas não avaliei até que ponto era sombria até ao momento em que abri o seu diário. Quem me dera tê-lo lido enquanto ela ainda vivia! Tantas coisas que eu teria feito de outra maneira!
«Elisa foi um bebé milagroso. A minha primeira mulher, Judy, e eu passámos por uma série de abortos involuntários, pelo que decidimos adoptar uma criança. Em Junho de 1975, tínhamos dois filhos, Tate e Sally. Um mês depois, Judy soube que estava grávida. Quando os médicos nos disseram que esse bebé sobreviveria, nem quisemos acreditar. A miúda nasceu no dia 22 de Janeiro de 1976. Chamámos-lhe Elisa Ruth McCall.
«Era daquelas crianças sossegadas que nunca se cansam de estar ao pé de nós. O seu tio Bill chamava-lhe Miúda Velcro. Sentávamo-nos no sofá, olhávamos para baixo e lá estava Elisa, com os seus olhos castanhos grandes como pratos, encostada aos nossos joelhos. Não havia amor que lhe chegasse.
«Eu bem tentei. O que quer que fosse que a interessasse, eu participava. Quando passou para a quarta classe começou a praticar corrida, ajudei-a a treinar. Num dia de prova, reparei que havia nuvens carregadas no horizonte. ''Não penses na trovoada'', recomendei. ''Vai dar-te vantagem''.
«Mais tarde, quando o rugido dos trovões ressoou pelos céus do Texas e a chuva começou a cair, Elisa olhou para mim, sentado na bancada, como se eu fosse um adivinho e acelerou, adiantando-se aos adversários, apanhados de surpresa pela carga de água. Para nós dois, aquele olhar dissera tudo.
«Contudo, a sua necessidade de vencer, a sua obsessão perfeccionista, prenunciavam o futuro. Um dia, quando ela tinha 10 anos, encontrei-a sentada no quarto, amuada.
«''Que se passa, querida?'', perguntei. Ela estendeu-me uma lista de tarefas na qual se viam coisas como acordar, ir para a escola, limpar o quarto.
«''Não consegui fazer tudo'', declarou ela. Tentei explicar-lhe que não precisava fazer listas. Mas percebi que ela não estava a ouvir-me.
«Sempre acreditei que os meus filhos estavam em primeiro lugar. No meu bem sucedido trabalho de consultor financeiro, era costume dizer aos meus clientes ''Se um dos meus filhos telefonar, tenho de me ir embora''. E dizia aos miúdos: ''Podem sempre contar comigo''. Parecia muito virtuoso, mas na verdade só o era parcialmente. Esperava que os meus filhos viessem ter comigo, e eles faziam-no muitas vezes. Mas eu estava tão ocupado com o meu trabalho que talvez tenha falhado en aproximar-me deles.
«Entretanto, Judy tornara-se obcecada pela imagem e pelo desejo de ter uma família e uma casa perfeitas. Dizia às raparigas coisas como ''Não se pode ter êxito como mulher se não se for magra''. As duas raparigas bebiam leite magro, Tate bebia-o gordo. A nossa casa tinha que parecer saída das páginas de uma revista, sem uma única coisa fora do seu lugar, uma imagem perfeita.
«A combinação destes factores em Elisa deu um resultado desastroso.
''Queria ser uma cheerleader perfeita, magra, bonita, saudável, elegante. Queria estudar a Bíblia e ser útil aos outros... Durante o Inverno do meu segundo ano do liceu (1991), comecei a empanturrar-me e depois a passar fome durante dias. A regra era empanturrar-me um dia por semana ... Aos poucos, as barrigadas passaram a duas vezes por semana, e eu comecei a sentir que estava a descontrolar-me''.
«A Bulimia Nervosa é uma doença caracterizada por um ciclo secreto de acessos de fome incontrolável, seguidos de fases de purga. A doença de Elisa dominou-a por volta da fase de ruptura do meu casamento. O divórcio parece ter sido a gota de água, em parte porque significava que não éramos perfeitos. Tentei continuar a ser o pai que ela tivera quando vivíamos todos juntos, mas não fazia ideia do que se passava na cabeça dela. Ninguém sabia.
''Encontrei conforto nos meus amigos, mas isso acabou por não bastar. Não conseguia encontrar palavras para explicar como o que se passava em casa me magoava. Se o fizesse, isso implicaria que não queria ou não podia ser a pessoa perfeita que queria ser. Talvez também tenha pensado que, se fosse uma estrela do Liceu de Highland Park, poderia compensar tudo o que correra mal.''
«Em Fevereiro de 1991, Elisa tentou suicidar-se com uma overdose de comprimidos e foi internada na ala psiquiátrica do hospital. Os médicos diagnosticaram-lhe um distúrbio alimentar.
«Não parecia uma verdadeira doença. Seguramente, disse para mim próprio, ela há-de ter coragem bastante para parar de vomitar de propósito. Sempre fora uma lutadora desde o dia em que nascera.
«Após a sua hospitalização, na Primavera de 1991, Elisa veio viver comigo, e um nutricionista ajudou-a a fazer um plano de alimentação saudável. Pesava nessa altura cerca de 50kg. Assumi a atitude de que a minha filha era forte e sabia o que tinha de fazer para recuperar a saúde. Receava que, se andasse sempre em cima dela, se interferisse, ela interpretasse isso como intromissão ou desconfiança.
«Tentei, portanto, mostrar-me compreensivo e solidário, mas era doloroso vê-la numa inquietação com o seu aspecto. Porque não conseguia vêr-se a si mesma como nós a víamos? Eu dizía-lhe: ''És bonita, elegante e inteligente.'' Mas o que ela via era uma imagem distorcida do seu corpo, como a de um espelho de deformar. ''Sou gorda'', replicava.
«Apesar da sua incapacidade de quebrar os laços da bulimia, dava a impressão de levar uma vida estupenda e invejada por muitas raparigas. Era membro do grupo de dança, tinha muitos amigos e um excelente trabalho numa loja de roupas. E tornou-se cheerleader, o que para ela era um sonho feito realidade. Mas um aumento de peso de 5kg, que a deixou com um total de 55kg, roubou-lhe toda a alegria.
''Primeiro ano depois de ter chegado a cheerleader, deixei tudo ir por água abaixo ... Não tardou que me empanturrasse três vezes por semana. Depois, deixei completamente de me controlar. Com os amigos, tentava fingir que superara finalmente o meu problema com a comida ... Fiz um papelão, mas estava a matar-me por dentro ... A comida tornou-se a minha melhor amiga em todos os sentidos ... (No último ano) tentei desesperadamente acabar com as saias de cheerleader. Sabia que toda a gente via como eu estava gorducha.''
«Quando concluiu o liceu, Elisa quis recomeçar do zero. Isto depressa se tornou num padrão: mudou de universidade duas vezes, na convicção de que seria melhor. Mas depressa aprendeu que a doença ia com ela. Então, na Primavera de 1996, durante uma ausência minha fora do país, Elisa desistiu da escola e partiu para uma viagem pelo Colorado e o Utah. Ainda não percebera que não podia fugir de si própria.
''Como descontroladamente já há três dias. Deixei o motel e fui passear pela cidade à procura de comida. Parei quatro vezes para 'encher o bandulho' e depois decidi ir até ao Parque Nacional de Canyonlands ver as vistas, talvez acampar ... Mas acabei num quarto barato a comer gelado, tiras de frango, rodelas de cebola e batatas fritas e a ver televisão''
«Vários dias depois, foi internada num hospital de Moab, Utah, por tentativa de suicídio com comprimidos. Telefonou-me e fui a correr ter com ela. Quando cheguei, ela pareceu surpreendida.
«''Não acredito que não estejas zangado comigo, pai'', comentou.
«''Querida, por que haveria eu de estar zangado contigo?'', repliquei. ''Eu amo-te''. Não saberia ela o quanto?
«No caminho de regresso, disse-me que chegara a um novo patamar de compreensão sobre a sua doença. Embora o seu peso tivesse atingido cerca de 68kg, o que a perturbava imensamente, afirmou que tinha começado uma nova etapa cheia de força. Parecia sinceramente ter as coisas sob controle.
''Passei um dia óptimo, se pensarmos que tentei matar-me dois dias antes. Dei por mim a esquecer realmente que aquilo tinha acontecido. O pai é um tipo fantástico. Adoro estar com ele. Ao lado dele, posso ser eu mesma, e não é forçado ou só mental. Aceita-me tal qual sou e não fez um bicho-de-sete-cabeças desta tentativa de suicídio, que é exactamente o que eu preciso''
«De volta a Dallas, quis que a Elisa retomasse o tratamento. Ela recusou. Decidi mostrar-me duro:
« ''- Então, volta para a escola ou arranja um emprego.''
«Ela regressou a Austin, e eu telefonei ao seu terapeuta para lhe dizer que a Elisa ia voltar e que estava preocupado com ela.
«Vários dias depois, num domingo, o telefone tocou. A minha mulher, Leslie, atendeu e irrompeu em gritos. Peguei no auscultador. Um polícia de Austin deu-me a pior notícia imaginável:
« ''- Lamento muito, Mr. McCall, a sua filha morreu.''
«Elisa enforcara-se no seu quarto com uma corda amarela.
«Em retrospectiva, vejo até que ponto esperei que os meus filhos soubessem o que fazer e como abdiquei de tomar posições firmes. Muitas vezes devia ter dito ''Não, eu sou o teu pai e eu é que sei. É assim que vamos fazer''
«No caso de Elisa, não só as minhas suposições sobre as capacidades dela me turvaram as ideias, como lhe alimentaram a doença. Embora eu constatasse a realidade objectiva do estado físico de Elisa, coisa que ela não conseguia, a imagem que tinha da minha filha como uma mulher forte e confiante, capaz de derrotar a bulimia, estava errada. Na realidade, ela era uma rapariga fragilizada e perturbada que precisava desesperadamente do auxílio de uma mão firme.
«Muito tempo e muita angústia depois, compreendi que, embora não tivesse podido salvar a minha própria filha, talvez pudesse ajudar outros. Agora, a minha esperança é que os pais leiam a história de Elisa e tenham a oportunidade que eu não tive. Ou talvez o seu diário seja lido por uma jovem que nele reconheça a voz que escraviza o seu próprio espírito e faça uma escolha diferente: a vida.
«Como pais, temos que ser vigilantes, informados e conscientes. Uma intervenção precoce é fundamental. Um distúrbio alimentar é uma doença com sintomas. É frequente a sua filha levantar-se da mesa do jantar e desaparecer na casa-de-banho? Disserta regularmente sobre dietas e perda de peso e parece obcecada com a sua aparência e peso? São isto são sinais de alarme. Outros alertas podem ser uma perda de peso repentina ou o afastamento da escola e dos amigos.
«Se suspeita de alguma coisa, não pergunte à sua filha se quer ir ao médico. Leve-a a uma consulta. Esqueça isso de ser um amigo. É a vida dela que está em jogo. E não acredite quando ela lhe disser que está tudo bem. Isso não é a sua filha a falar. É o predador que se instalou nela: a voz que a convenceu de que é feia e não vale nada e que a única solução consiste em matar-se à fome ou, como no caso de Elisa, procurar um caminho ainda mais rápido. Mas não tem que ser assim. Só teve que ser assim connosco. É possível mudar. Já vi isso com os meus olhos. Era o que Elisa queria ver também.
''Espero que esta mensagem passe para a sociedade e lhe peça que preste atenção ... Com a minha morte, espero, influenciarei mais vidas do que conseguiria em vida''.»


3 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Obrigado pelo post no blog da Thunder... pena será, não nos conhecermos e não partilharmos olhos nos olhos impressões e pensamentos!

twido disse...

muito obrigado pelo comentário. Com certeza que haverão outras oportunidades e por certo lá estarei :)